top of page

Eleições na Bolívia: o fim de um ciclo?


Alina Ribeiro

Doutoranda em Ciência Política na USP e pesquisadora do NDAC/CEBRAP 



No dia 19 de outubro de 2025, os bolivianos elegeram seu novo presidente, Rodrigo Paz Pereira, do Partido Democrata Cristão (PDC). O segundo turno das eleições bolivianas foi acirrado, e marcado pela crise econômica que vem assolando o país nos últimos anos. Ao longo de sua campanha, Paz procurou vender uma imagem de cidadão de bem e pai de família e buscou, como outros candidatos, se promover como alternativa crítica ao partido Movimento ao Socialismo (MAS), que governa a Bolívia há praticamente duas décadas.


Na Bolívia, essas eleições foram inéditas. Pela primeira vez na história, houve um segundo turno nas eleições gerais e, pela primeira vez em 20 anos, o MAS foi praticamente excluído da disputa presidencial, obtendo apenas cerca de 3% dos votos no primeiro turno. Esse resultado foi particularmente surpreendente, já que o MAS vinha sendo, desde 2006, partido hegemônico na política boliviana. Esse é o ápice de uma crise político-econômica que vem se desenvolvendo há alguns anos. Para entendermos como o partido perdeu sua força política, é necessário voltar no tempo. Nesse texto, trato sobre o histórico do MAS enquanto partido dirigente e aponto algumas expectativas em relação ao novo presidente boliviano.


O MAS foi criado no fim da década de 1990 por três organizações indígenas e camponesas como um “instrumento político” que seria capaz de garantir maior representação direta, permitindo que pessoas indígenas e camponesas ocupassem cargos institucionais e atuassem na formulação de políticas públicas e na criação de leis. É por isso que o nome completo do MAS é, na verdade, MAS-IPSP: “Movimento ao Socialismo – Instrumento Político para a Soberania de Todos os Povos”.


O partido teve uma ascensão rápida: destacou-se nas eleições subnacionais de 2002 e, em 2005, sob a liderança de Evo Morales Ayma – indígena aymara e militante cocaleiro da região do Chapare – conquistou também a presidência. Morales tornou-se o primeiro presidente indígena do país, um feito notável em uma nação que, apesar de ter historicamente as maiores taxas de população indígena da região latino-americana, tinha sido governada, até então, por uma elite política branca. Iniciava-se, assim, o chamado “proceso de cambio” (processo de mudança). Morales, figura-chave do partido, foi reeleito em 2010, 2015 e 2019.


ree

Imagem: Ahora El Pueblo, 28 fev. 2025. Disponível em: https://ahoraelpueblo.bo/index.php/nacional/politica/evo-deja-el-mas-ipsp-la-fuerza-que-lo-llevo-al-poder-para-pactar-con-un-partido-de-derecha. Reprodução para fins informativos e educacionais.


O primeiro governo de Morales (2006-2010) foi um momento de transformação política e inclusão social. O estabelecimento de uma Assembleia Constituinte em 2006 abriu as portas do Estado para representantes de movimentos, sindicatos e organizações indígenas e camponesas. Pela primeira vez na história, esses sujeitos ocupavam sistematicamente cargos institucionais e foram os redatores – e negociadores – da nova constituição. 


A nova Constituição Política de Estado, promulgada em 2009, marcou uma profunda transformação institucional ao refundar a Bolívia como Estado Plurinacional. Reconheceu a coexistência de múltiplas nações e culturas no interior do país e incorporou princípios e cosmovisões originários dos povos indígenas, como o Vivir Bien (em aymara, “Suma Qamaña”). Além de estabelecer direitos da natureza e reconhecer juridicamente as autonomias indígenas, a Constituição introduziu a democracia intercultural como base de uma nova arquitetura democrática, articulando mecanismos de democracia representativa, participativa e comunitária. Assim, ideias e reivindicações historicamente construídas pelos movimentos sociais e indígenas foram incorporadas ao documento máximo do país, passando a orientar a forma pela qual o Estado concebe e enfrenta os problemas públicos. 


Contudo, após o primeiro governo Morales, momentos de tensões e rupturas políticas marcaram o início do desgaste, tanto de Morales, quanto do partido. Destaco três deles. Em 2012, o conflito em torno do Território Indígena e Parque Nacional Isiboro Sécure (TIPNIS) tornou-se emblemático. O governo apoiava a construção de uma rodovia que ligaria os departamentos de Cochabamba e Beni, atravessando a área, que é um território comunitário demarcado. Enquanto o governo defendia a obra em nome do desenvolvimento e da integração nacional, organizações e comunidades indígenas locais se mobilizaram contra o projeto, denunciando violação de direitos territoriais e ambientais. O episódio resultou em um distanciamento entre o governo e alguns setores do movimento indígena, que passaram, em alguns casos, a participar de eleições por meio  de outros partidos.


Em 2016, o desgaste se aprofundou. Em fevereiro daquele ano, o Órgão Eleitoral Plurinacional (OEP) convocou um referendo sobre a alteração do artigo 168 da Constituição, que limitava as reeleições presidenciais. Morales, então em seu terceiro mandato, buscava viabilizar uma nova candidatura nas eleições de 2019. A maioria dos eleitores rejeitou a proposta (51,3%), mas, em 2018, o Tribunal Supremo Eleitoral autorizou sua candidatura, interpretando o direito à reeleição como um “direito humano”. A decisão foi amplamente criticada pela oposição e por setores da sociedade civil.


A viabilização forçada da candidatura de Morales às eleições de outubro de 2019 gerou um cenário conturbado. Após a divulgação dos resultados oficiais que lhe garantiam a vitória com 55,18% dos votos, o principal candidato da oposição, Carlos Mesa, denunciou fraude eleitoral – suspeita posteriormente reforçada por um relatório da Organização dos Estados Americanos (OEA), que apontou irregularidades no processo. As denúncias desencadearam protestos em todo o país e a ruptura de setores das Forças Armadas e da Polícia com o governo. O ponto culminante da crise ocorreu quando o então comandante das Forças Armadas, general Williams Kaliman, sugeriu publicamente a renúncia de Evo. Sob pressão intensa, Morales renunciou e deixou o país, aprofundando o período de instabilidade política.


Após sua renúncia, a Bolívia viveu um ano de governo interino de direita, liderado por Jeanine Áñez, que buscou romper com o legado do MAS e promoveu uma agenda contrária ao governo anterior, marcada por forte repressão a setores populares e indígenas. Em outubro de 2020, foram convocadas novas eleições gerais, nas quais o candidato indicado por Morales, Luis Arce, ex-ministro da Economia dos governos masistas, foi eleito presidente. Embora ambos pertencessem ao mesmo partido, os governos de Morales e Arce apresentaram diferenças significativas. Arce, de perfil mais técnico e menos carismático que o histórico líder cocaleiro, enfrentou baixos índices de popularidade e crescentes desafios econômicos. A escassez de divisas estrangeiras – que afeta os preços internos e a disponibilidade de combustíveis, majoritariamente importados – gerou preocupação generalizada e contribuiu para o desgaste político de sua administração.


Nos meses que antecederam as eleições, Evo Morales rompeu formalmente com o MAS, após disputas internas com Luis Arce e outros dirigentes. Morales passou a rivalizar abertamente com Arce, o que gerou uma profunda divisão não apenas dentro do partido, mas também entre as próprias organizações indígenas e camponesas historicamente vinculadas ao MAS. Sua imagem pública também sofreu um abalo significativo depois que foi impedido pela justiça boliviana de se candidatar e passou a responder a acusações de pedofilia envolvendo um caso ocorrido durante seu governo. Além disso, Morales tem um mandato de prisão emitido pela justiça, mas não foi detido porque permanece em seu reduto político em Cochabamba, cercado por militantes que o protegem.


Nas eleições de 2025, o MAS lançou a candidatura de Eduardo del Castillo, ex-ministro de Governo, que também enfrentava altos índices de rejeição. Rodrigo Paz e outros candidatos procuraram se apresentar como alternativas ao MAS, explorando a insatisfação de parte da população com o partido. Distanciando-se do discurso outrora socialista, Paz lançou o slogan “capitalismo para todos”, prometendo recuperar a estabilidade fiscal sem abandonar os setores populares que dinamizam a economia boliviana – fortemente marcada pela informalidade. Durante a campanha, o então senador por Tarija defendeu redução de impostos, ampliação do acesso a crédito, eliminação de restrições às importações, revisão dos subsídios aos combustíveis e descentralização orçamentária.


Com a eleição de Paz, espera-se um governo focado em enfrentar os desafios econômicos urgentes, como a inflação anual de 23% e a escassez de combustíveis. No que concerne à falta de dólares no país, o novo presidente disse que não pedirá empréstimos ao Fundo Monetário Internacional (FMI), e que resolverá o problema com um ajuste de contas e combate à corrupção. Paz também sinaliza medidas voltadas à reativação produtiva, formalização do trabalho (hoje, 85% da economia boliviana é informal) e crescimento do setor privado. Os programas sociais não deverão ser interrompidos, dado que garantem maior governabilidade e sustentam o poder de compra das famílias.


Para além da aproximação com os Estados Unidos, mudanças radicais na política externa não são previstas, já que o país continua dependente da atração de investimentos e da produção e exportação do lítio, uma de suas principais apostas comerciais. Em sua busca urgente de garantir maior estabilidade econômica, Paz precisará atuar como articulador eficaz em fóruns estratégicos, como BRICS e Mercosul, adotando, assim, um projeto de continuidade, ainda que limitado. Já nas relações com países como Cuba e Venezuela, tende a ocorrer um distanciamento progressivo.


Diante desse novo cenário político, muitas dúvidas se levantam sobre como o novo governo lidará com os movimentos indígenas e camponeses. Nesse sentido, cabe entender que a criação do MAS marcou a insurreição de um novo sujeito político na Bolívia: o indígena-camponês. Hoje, mais articulados, conectados e organizados, indígenas e camponeses conformam uma base eleitoral fundamental na Bolívia, da qual qualquer governo depende para garantir legitimidade e estabilidade política.


ree

Alina Ribeiro foi entrevistada, na quinta-feira, 23/10, no canal de youtube da Carta Capital. Acesse o bate-papo completo aqui.



Gostou do conteúdo? Dê um like, compartilhe em suas redes e não esqueça de marcar o @ndac.cebrap



* Este texto não representa necessariamente as opiniões do NDAC/CEBRAP.

** Este texto contou com o apoio de ferramenta de inteligência artificial (ChatGPT), utilizada exclusivamente para correção textual e localização de reportagens jornalísticas públicas.

Comentários


  • Instagram

Núcleo de Democracia e Ação Coletiva

Contato: ndac@cebrap.org.br

CEBRAP

R. Morgado de Mateus, 615
Vila Mariana, São Paulo – SP, Brazil
CEP 04015-051
(11) 5574 0399
(11) 5574 5928

Logo CEBRAP
Logo NDAC

© 2024 NDAC. Criado por Manu Raupp

bottom of page